Em um tempo imemorial, nada mais existia além do Òrun². No momento anterior à criação, tudo o que existia era uma massa de ar infinita, que era o próprio Olórun³, e as divindades primordiais, os Orixás Funfun, Orixás do Branco, divindades da mais alta hierarquia.
No Òrun tudo era harmonioso e agradável, não existiam o calor, o frio, a fome, a sede, nem qualquer tipo de desconforto ou necessidade que não fosse suprida.
Olórun, em um momento de inspiração, resolveu que além do Òrun, deveria existir um novo mundo que seria habitado por outros seres além deles. Para essa tarefa, convocou Oxalá, seu filho mais velho, e o encarregou da missão de criação desse novo mundo, o qual seria chamado de Àiyé, um mundo material. Olórun determinou que todos os Orixás teriam suas funções no mundo material, todas elas importantes, porém deveriam agir sob as ordens de Oxalá. O Deus Supremo entregou ao Grande Orixá o saco da existência (àpò-iwà), orientando-o a procurar Orunmilá (Òrúnmìlà – o Senhor da Sabedoria e do Destino) para obter as orientações que lhe possibilitariam cumprir a sua missão com êxito.
Porém Oxalá, movido por sua vaidade e prepotência, disse a Orunmilá que não faria qualquer oferenda a Exu, pois ele era mais importante e mais poderoso que o Senhor dos Caminhos, e saiu da casa de Orunmilá sem dar atenção às orientações do velho sábio. Oxalá esqueceu que Orunmilá jamais se engana. Na sua arrogância, negligenciou as prescrições apontadas na consulta a Ifá e partiu para criar o mundo, seguido pelos demais Orixás Funfun, sem cumprir com as suas oferendas.
O caminho que separava o Òrun do local destinado para a criação do novo mundo era longo, coberto de areia, e sem nenhuma forma de vida. Caminhando arduamente debaixo do forte sol, em pouco tempo a água que tinham levado para cumprir a travessia se esgotou e os Orixás experimentavam pela primeira vez as sensações de sede e calor. Seus pés queimavam na areia e suas roupas brancas ficaram encharcadas de suor.
Oxalá ao avistar a palmeira, estando sedento, dirigiu-se imediatamente até ela, acreditando que, em um local onde poderia crescer uma árvore, ele poderia encontrar água para acabar com a sua sede e dos demais Orixás que o acompanhavam. Chegando lá constatou que não existia nada além daquela árvore nos arredores. Como a sede já era insuportável, Oxalá fincou seu cajado (òpá sóró) no tronco da palmeira, colheu em uma cabaça a sua seiva, o chamado vinho de palma (emu), e a bebeu até estar saciado. Tendo em vista que a bebida possui alto teor alcoólico, Oxalá ficou embriagado e acabou adormecendo.
Os demais Orixás que acompanhavam Oxalá, não conseguindo acordá-lo, retornaram ao Òrun sem ele, lamentando pelo fracasso da missão. Após os demais Orixás abandonarem Oxalá, Exú foi até ele e pegou o saco da criação, levando-o de volta às mãos de Olórun.
Olórun então chamou Odudua, entregou-lhe o saco da existência e pediu que este fosse cumprir a missão antes designada a Oxalá. Odudua agradeceu ao pai pela confiança e disse que faria tudo o que fosse necessário para cumprir as ordens de Olórun.
Odudua foi imediatamente aconselhar-se com Orunmilá, que consultou Ifá e orientou-o a fazer o mesmo o mesmo ebó (oferenda) antes prescrito a Oxalá. Odudua cumpriu com as prescrições e ofereceu a Exu a cadeia de dois mil elos, as cinco galinhas d’angola, os cinco pombos e o camaleão.
Exu recebeu sua oferenda e, como retribuição, retirou um elo da corrente e o pôs no braço, devolvendo à Odudua o restante da corrente, uma galinha, um pombo e o camaleão, e avisou que esses itens seriam importantes na criação do mundo. Então Odudua foi ao palácio de Olórun e ofertou-lhe 200 igbins, que aceitou sua oferenda e devolveu ao filho um deles.
Retornando à companhia dos demais Orixás primordiais, Odudua solicitou que Ogum fosse à frente da comitiva, pois Ogum já conhecia os caminhos e saberia qual seria o trajeto mais rápido e menos árduo para chegar ao local determinado por Olórun para a criação do Àiyé. Atrás de Ogum, partiu para a sua missão, seguido pelos demais Orixás. Após a longa viagem, chegaram ao òpa-òrun, o pilar que une o Òrun (mundo espiritual) ao Àiyé (mundo material). Nesse local o deserto de areia terminava e só havia um vazio absoluto.
Odudua então soltou o pombo branco que, ao voar, gerou luz e iluminou o que antes era apenas escuridão.
Depois disso Odudua soltou o igbin, e dele começou a jorrar água, que foi se acumulando e deu origem a um imenso oceano.
Odudua então retirou terra de uma cabaça que levava dentro do saco da existência e a lançou ao oceano. Após soltou a galinha d’angola, que imediatamente começou a ciscar, espalhando a terra em todas as direções.
Odudua então se pendurou na cadeia de dois mil elos e desceu em direção ao desconhecido. Soltou o camaleão e pediu a ele que caminhasse pela terra, averiguando se estava segura e firme. Após a confirmação do camaleão de que havia segurança para descer, Odudua pisou no mundo, sendo seguido pelos demais Orixás que o acompanhavam.
Odudua fundou desta forma a cidade de Ilê Ifé, o berço da civilização iorubá, o umbigo do universo, que se espalhou para o resto do mundo. Só depois disso Oxalá despertou, foi até Olórun e este disse-lhe que a sua missão havia sido cumprida com êxito por Odudua, porém Oxalá teria o importante papel de criar os seres que povoariam esse novo mundo.
Toda esta epopeia durou apenas quatro dias. Para representar essa criação, os iorubás utilizam o IGBÁ-ODÙ (ou igbádù): uma cabaça cortada horizontalmente em duas metades, sendo a parte superior pertencente a Oxalá e representando o Òrun, o mundo espiritual; e a parte debaixo pertencente a Odudua e representando o Àiyé, o mundo material. Essas duas metades devem manter-se sempre unidas, trazendo em seu interior quatro pequenos recipientes de casca da noz do coco cortado ao meio, contendo, cada um deles, um elemento que simboliza os três sangues do axé: o sangue branco, o sangue vermelho e o sangue preto, e ainda lama, a matéria-prima da criação do homem. Separar as duas metades do igbádù, a cabaça da existência, significaria a própria destruição do mundo.
NOTAS:
Nota 1: Há mais de uma versão cosmogônica, algumas
reportando Odudua como criador da terra, e em outras a terra é criada Oxalá. Aqui
será apresentado um resumo de algumas versões que retratam Odudua como o
criador.
Nota 2: Òrun é
considerado o mundo espiritual, espaço habitado por Olórun, pelos Orixás e
entidades espirituais de diferentes categorias.
Nota 3: Olórun ou
Olódùnmarè é o grande Deus da criação, é o Deus Supremo, que age acima dos
demais Orixás. Por esta razão, as religiões de matriz africana são monoteístas,
pois se acredita em um único Deus Supremo.
Nota 4: Odùduwà é
considerado o progenitor da sua raça, fundador da cidade de Ilê Ifé. Em algumas
teses é considerado o princípio feminino da criação, contrapondo Oxalá, o
princípio masculino.
Obras consultadas:
JAGUN, Márcio de. Orí: a cabeça como divindade. Rio de Janeiro: Litteris, 2015.
OXALÁ, Adilson de. Igbadu, a cabaça da existência: mitos nagôs revelados. Rio de Janeiro: Pallas, 2010.
REFLEXÕES:
- Diante de circunstâncias
importantes, é sábio consultar Ifá buscando os aconselhamentos necessários que
possibilitem o nosso sucesso.
- Muitas vezes
consultamos o oráculo e não entendemos de pronto as prescrições e advertências
recomendadas. Apenas Orunmilá conhece o destino, e ele não se equivoca. O que
não faz sentido no dia de hoje, fará sentido amanhã. Todavia, se seguirmos as
recomendações teremos um tipo de resultado e se as negligenciarmos poderemos
ver os efeitos negativos dessa negligência. Eram as oferendas prescritas por
Orunmilá que dariam a Oxalá as ferramentas necessárias para realizar a tarefa
com sucesso.
- Agradar Exu (Òrìsà
Èsù) é sempre imprescindível para nós que cultuamos Orixá.
- Odudua teve a
humildade de pedir ajuda a Ogum, Orixá que já tinha conhecimento do caminho que
deveria ser percorrido, o que permitiu que a sua caminhada fosse menos árdua. Isso
nos ensina que ir em busca da sabedoria daqueles que já a possuem pode
facilitar a nossa jornada. Também nos mostra que muitas vezes os mais novos
possuem algum conhecimento que nos falta, por esse motivo é importante ter
humildade para aprender com todos.
- Oxalá sedento tomou o
vinho de palma, que era o líquido que tinha à disposição naquele momento. Muitas
vezes o caminho mais fácil não é a melhor solução, e quando estamos em situação
desesperadora, podemos tender a tomar decisões que terão um alto custo depois. Mesmo
diante das dificuldades devemos buscar a prudência e sabedoria para agir com
assertividade.
- Onde só vemos trevas,
é possível criar a luz. Precisamos buscar as ferramentas certas para isso.
- Odudua pediu ao
camaleão que checasse a firmeza da terra para poder saltar. Antes de dar um
passo importante na vida, é prudente checar se é um bom caminho, se há
segurança para essa decisão.
- O mundo espiritual e
material são indivisíveis, e o equilíbrio da existência consiste na união e
harmonia entre eles. Nós somos seres materiais e espiritais, e para vivermos a
nossa existência em plenitude, devemos buscar esse equilíbrio físico e
espiritual em nosso dia a dia.
Você consegue tirar outras lições desse itan?
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